Translação Vigiada

Escoa no choro da calha
Jorro de lágrimas vindas do céu
trazendo fria umidade
e levando pro fundo da terra
lembranças nossas pra quem já morreu

Emoldurados na parede
meus mortos observam meus movimentos
silenciosamente convictos
da universalidade da trajetória
não se contentam com a comunicação
feita pela chuva entre as duas dimensões
e aguardam, pacienciosos, o reencontro

Ilusão vã...
na casa escura e quieta
percorro o corredor infinitas vezes
transito no difícil trânsito da transição
e no lerdo movimento de translação
sob a vigilância atenta dos meus mortos.

S/1979

PORTEIRA ABERTA

Todo voo que baixa rasante
Por trás da estátua do laçador
Entrando no  poncho de Porto Alegre
Traz modismos de estranho  valor
E pousa ileso do laço do gaúcho
Que a pé, não laça mais nada
Vendo o pampa entregue aos javalis
Estático no pedestal de atração turística.

O/2012

O ENGAVETADOR DE POETAS

Poema é como um gaveteiro
Em que cada verso é uma gaveta
Onde engavetamos nossos sentimentos do mundo
Materializados em palavras sólidas
Portanto, como qualquer outro tipo de guardado
Poemas ficam sujeitos à depreciação do tempo

Reler nossos próprios poemas antigos
É como remexer nas gavetas do porão
Com traças, mofos e vãs naftalinas
Pois, no máximo, ficam fora de moda, fora de época
Mas sempre desvelam peças esquecidas
Que confinam vivos os nossos fantasmas inconscientes.

O poeta fica engavetado em seus poemas.

                                                                       E/2009

Apocalipse Temer

O Golpe abriu a caixa de maldades da Direita brasileira
Machista, racista, homofóbica, anti-indigenista, moralista
Entreguista, antiaposentadoria, escravagista dos sem eira nem beira.

H/2017

INVENTÁRIO

Não plantei nenhuma árvore no raro mato
Mas escrevi livros, amei e tive filhos
E ainda criei um ParTido e um SIMdicato.

H/2017
                     

                                          

Verbete de dicionário

Mordaz:
que morde;
que corrói;
que é picante;
que é pungente;
que é satírico;
que é maledicente.

                                                           I/2008

Veranico de Julho

Sol morno, mar gelado, areias vazias
Crianças em férias, todos de roupa na praia
Turistas no calçadão, surfistas nas águas frias.

H/2017

Há Justiça nas Leis?

Quem faz as leis são semi-políticos corruptos
Quem prende são policiais semi-bandidos brutos
E quem julga são juízes semi-deuses corrompidos.

H/2017

Heteronimofobia

Fernando Pessoa matou Alberto Caeiro com as próprias mãos
Ricardo Reis foi morto por Saramago, o Nobel de Portugal
Logo, Álvaro de Campos deve estar escondido sob proteção policial.

H/2017

CICLOS DO NOSSO ENCONTRO

De Ruiva Aurora, da paixão ardente
Que rompeu iluminando os meus dias
Energizando de sentido as coisas simples da vida
E alegrando o ser e estar no aqui e agora...

De tábua de salvação, na qual me agarrei
Para emergir do tédio e da  náusea poética
Pretendendo sobreviver à deriva de álibis forjados
Agarrado à realidade excitante do teu corpo...

De bolha da paixão, onde nos ilhamos do mundo
E tememos sair da praia com o nosso amor
Ao vermos tantos afundarem  no mar...e haja mar...

De sereia, em cujo canto me encantei
Com medo que fosses uma baleia enfeitiçada...

De rubra Vênus sobre o meu Marte moreno
Levitando como estrela na mágica vara de condão
Trilhamos o caminho da sábia cura kármica

De urubuservadores, nos momentos mais difíceis
Não viramos a mesa nem devolvemos as chaves
Guiados pelo fresquinho macio do tesão que nos une
Fizemos infindáveis ensaios prazerosos de despedidas

De dramas, da dor presumida de uma gaiola vazia
De crises, de rituais de um amor cego vivendo de orgasmos

Oh!  Luz da Aurora Ruiva que rompeu!
Que dá sentido a tudo o que se viveu, vive e viverá.
De ciclo em ciclo vamos serenando o nosso amor.

                                                                                                                                                                              I/2005

BELCHIANAS

Das coisas que aprendi nos discos
Quanto rock dando toque, tanto blues
Não estou interessado em nenhuma teoria
Eu sou apenas um rapaz latino-americano
Um tango argentino me vai bem melhor que um blues
Estou muito cansado do peso da minha cabeça
O dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, velho cartaz
Na parede da memória esta lembrança é o quadro que dói mais
E nas paralelas dos pneus n’água das ruas
Levar a saudade na camisa toda suja de batom
O passado é uma roupa que não nos serve mais
Você não sente nem vê mas eu não posso deixar de dizer
Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais
Desesperadamente eu grito em português
Tenho vinte e cinco anos de sonho e de sangue e de América do Sul
E eu quero é que esse canto torto feito faca, corte a carne de vocês
A minha alucinação é suportar o dia-a-dia
Os humilhados do parque com os seus jornais
E a solidão das pessoas dessas capitais
Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas me interessa mais
A vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior
Enquanto houver espaço, corpo e tempo
e algum modo de dizer não eu canto
Viver a divina comédia humana onde nada é eterno
O fim do termo "saudade"como o charme brasileiro
Quando você entrou em mim como o Sol num quintal
Ainda sou estudante da vida que eu quero dar
De lágrimas nos olhos de ler o Pessoa e de ver o verde da cana
Foi por medo de avião aquele toque Beatle
John, eu não esqueço, a felicidade é uma arma quente
Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua
O que é que pode fazer o homem comum neste presente instante senão sangrar?
O que é que eu posso fazer um simples cantador das coisas do porão?
Fique você com a mente positiva que eu quero é a voz ativa (ela é que é uma boa!)
Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decido a minha vida
No fundo do prato, comida e tristeza
Eu tenho medo e medo está por fora
Eu tenho medo um Rio, um Porto Alegre, um Recife
E a única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter
Não quero o que a cabeça pensa eu quero o que a alma deseja
O meu coração selvagem tem essa pressa de viver
Esse negócio de amor já não se faz sem punhais
Esconda um beijo pra mim sob as dobras do blusão
Não vendi a alma ao diabo... O diabo viu mau negócio nisso de comprar a minha
Com a mesma dura ternura que aprendi na estrada e em Che
Eu era alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais
Mas veio o tempo negro e a força fez comigo o mal que a força sempre faz
Pra que mentir de fingidor das dores tão reais
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós
Eu quero meu corpo bem livre do peso inútil da alma
Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro.

+30/04/2017

Gerações Geradas


Quando eu era filho
os pais tinham todo o poder
e eu nenhum direito
Agora que sou pai
os filhos têm todos os direitos
e eu nenhum poder
Em 2050, meus netos, como vai ser?


P/1998

te amo

Sempre imaginei o amor super-super
como uma coisa super, super...
super fora do comum
com uma mulher "super-super"
num momento super-tri especial
e nunca numa lancheria comum
no horário comercial...
acontecendo como coisa normal.

K/1995

ASAS MISSIONEIRAS

Perdido em meu descaminho
trilhei estradas que não têm lei
e sem um sentido à vida
por mares negros naveguei
ergui pontes sobre abismos
e dos penhascos despenquei
bebi d´água mais ardente
das vertentes que encontrei.
         Asas do infinito
         Paz para os aflitos!
Na aridez do deserto
me vi de perto, me espelhei
e no fundo do espaço
homem de aço me transformei
qual nave que corta o cosmos
de mim próprio me afastei
e sem um sentido à vida
minha voz então calei.
         Asas do abandono
         Terras para os colonos!
Perdido em meu descaminho
feito fera que não se deixa cativar
um grande covil de cobras
fiz do meu peito por não lutar
limitado por meus muros
me esfolei até sangrar
porém num sopro de vida
consegui me libertar.
         Asas da liberdade
         Lucidez pra mocidade!
Hoje sou violeiro que viola
as violações violadas
hoje sou tropeiro que tropeia
as tropas apartadas
hoje sou cancioneiro que canciona
as canções cansadas
hoje sou missioneiro que  missiona
as missões arruinadas.
         Asas da criação
         Luz pra escuridão!

FE/1980

INTERIOR DE FORA

Não sofro frio nem calor
Sou lá de fora
Sou do interior

                                             H/2015

POETAR



Fazer poemas, poetar
É recolher a  poesia
Catada no dia-a-dia
Como flores do caminho
Ou pedras de tropeçar.

                                      O/2012

VARIAÇÕES ADVERBIAIS


Nunca é nada
E nada é nunca
Na vida...
Tudo é sempre
E sempre é tudo
Na morte...
Nada é sempre
E nunca é tudo
Na vida...
Sempre é nada
E tudo é nunca
Na morte...

Sempre é nunca
E tudo é nada
Nunca é sempre
E nada é tudo
Na vida e na morte.

                                    E/2008

OCIDENTE

Quando Aristóteles inventou o mundo
À grega, sob orientação platônica
E inspiração socrática
O Ocidente foi expulso do paraíso
Da contemplação silenciosa do hoje
Do eterno presente
E passou a buscar o sentido da vida
Aquilo que se mostra e não pode ser dito
Dentro dos limites da linguagem lógica.
Como se deve calar sobre o que não se pode falar
Toda a filosofia resultou em contrassensos.


                                                                            I/2004

teu corpo

Estou pilotando um avião
com quarenta turbinasas
amaciando em minhas mãos.

                                                         P/1996

Drama

Juro que nem acreditei
eu fiquei mudo e duvidei
depois senti o corpo gelar
senti-me múmia do passado
e o presente mais que perfeito
cedeu ao futurismo obcecado
seu repentino adeus cravou-se em meu peito
matando nosso louco amor apunhalado.

K/1995

2016: O ANO QUE NÃO ACABOU



O Ano Novo nasceu velho e assustador
Desacreditado e com uma herança maldita
Debilitado, 2017 não nasce como o Salvador.
                                                          H/2017