O ENGAVETADOR DE POETAS

Poema é como um gaveteiro
Em que cada verso é uma gaveta
Onde engavetamos nossos sentimentos do mundo
Materializados em palavras sólidas
Portanto, como qualquer outro tipo de guardado
Ficam sujeitos à depreciação do tempo

Reler nossos próprios poemas antigos
É como remexer nas gavetas do sótão
Com traças, mofos e vãs naftalinas
Pois só ficam fora de moda e de época
Mas sempre desvelam peças esquecidas
Que confinam vivos os nossos fantasmas inconscientes.
O poeta fica engavetado em seus poemas.

                                                                       E/2009

Ruiva Beijoqueira



É  quando digo
que o beijo que beija ela
não é o mesmo que beijas
que beijo eu...
É por que sei que no beijo
do beijar dela
tem o beijo desejado
pelo beijo meu...
É por que eu sei
que quando o beijo dela
é no meu beijo
me sinto todo beijado
em cada beijo seu.

P/1997

Monstro da pia


Como um monstro da lagoa

a louça na pia

diariamente dá cria

empilhada, se espicha pra espiar:

Quem vai lavar?...
K/1994


REBELIÃO DAS MÃOS

Se minhas mãos se rebelassem
Contra as ordens autoritárias
Que recebem da minha mente
Se minhas mãos conspirassem
Poderiam juntas me estrangular
Apertando o indefeso pescoço
Que segura a poderosa cabeça
Que contém o ardiloso cérebro
Centro de controle e espionagem
Com sua rede de sensores no corpo.

Se minhas mãos agissem rápidas
Esgoelando as vias de suprimento
Do Quartel General mental no crânio
Fazendo faltar sangue e ar aos neurônios
(Ao exército de bilhões de servos mentais)
Antes que os sensores soassem os alarmes
Pelos alertas dos sete buracos da cabeça
Poderiam juntas obter nossa libertação
Se as minhas mãos tivessem força
Pra vencer o poder da mente no coração.


                                                                                M/2012

VARIAÇÕES ADVERBIAIS

Nunca é nada
E nada é nunca
Na vida...
Tudo é sempre
E sempre é tudo
Na morte...
Nada é sempre
E nunca é tudo
Na vida...
Sempre é nada
E tudo é nunca
Na morte...
Sempre é nunca
E tudo é nada
Nunca é sempre
E nada é tudo
Na vida e na morte.

                                   E/2008

PAGANISMO
















Conforme a filosofia pré-socrática
De vários séculos antes de Cristo
Tudo está em movimento
Nada é, dizia Heráclito
Tudo está em permanente processo
De vir a ser
Eu, você, a natureza e o universo
Somos simultâneas fases heterogêneas
Do fluxo da existência
Que toma consciência de que está vindo a ser
(Sabe-se lá o quê e quais são os nossos desígnios)
E nos percebemos como o espírito do fenômeno todo
Como parte do todo, do material e do imaterial
Como parte do uno...de Deus?
Mas como é cristã esta filosofia pagã!
(Ou será o contrário?!?)

                                                                       I/2005

Modulação

Fico jogando pedras n’água

pra manter a água turva

e não ver a tua ausência

se espelhar em minha solidão

Fico jogando pedras n’água

pra modular na ondulação

minha declaração de amor.
                                          P/1996

Amor Cego


Meu Deus!
O mundo tá desabando
e ela babando no meu cangote
Os ratos estão nos roendo
e ela gemendo no meu sovaco
A fome tá se espalhando
e ela mamando no meu umbigo
A vida tá se perdendo
e ela vivendo do meu orgasmo.


K/1995

AULAS MATINAIS DE LETRAS

Quando o dia desperta
Por trás dos morros de Viamão
Com a intensa luminosidade
De um quadro de Dali
Quando o sol tira
A cabeça pra fora
Da coberta do horizonte
Abrindo as cortinas de nuvens
Nas manhãs deste seco outono
Eu no Campus do Vale-UFRGS
Gasto a manhã  tentando aprender algo
Não sei o quê e nem pra quê saber...

M/2012

IMPERMANÊNCIAS















Tudo é impermanente
Mais as horas que o relógio
Mais o gesto que a mão
Mais o eu que a imagem
Mais o corpo que o nome
Mais a vida que a alma
Alma?
Tudo é impermanente
Mais a certeza que a dúvida
Mais o desistir que o querer
Mais a desgraça que a esperança
Mais a fome que a miséria
Mais a guerra que a paz
Paz?
Tudo é impermanente
Mais a segurança que o medo
Mais a paixão que o amor
Mais a compaixão que a indiferença
Mais a água que a terra
Mais o planeta que o Cosmos
Mais o universo que Deus
Deus?
Tudo é impermanente.

                                               E/2008

CICLOS DE (DES)ENCONTROS

De Ruiva Aurora, da paixão ardente
Que rompeu iluminando os meus dias
Energizando de sentido as coisas simples da vida
E alegrando o ser e estar no aqui e agora...

De tábua de salvação, na qual me agarrei
Para emergir do tédio e da  náusea poética
Pretendendo sobreviver à deriva de álibis forjados
Agarrado à realidade excitante do teu corpo...

De bolha da paixão, onde nos ilhamos do mundo
E tememos sair da praia com o nosso amor
Ao vermos tantos afundarem  no mar...e haja mar...

De sereia, em cujo canto me encantei
Com medo que fosses uma baleia enfeitiçada...

De rubra Vênus sobre o meu Marte moreno
Levitando como estrela na mágica vara de condão
Trilhamos o caminho da sábia cura kármica

De urubuservadores, nos momentos mais difíceis
Não viramos a mesa nem devolvemos as chaves
Guiados pelo fresquinho macio do tesão que nos une
Fizemos infindáveis ensaios prazerosos de despedidas

De dramas, da dor presumida de uma gaiola vazia
De crises, de rituais de um amor cego vivendo de orgasmos

Oh!  Luz da Aurora Ruiva que rompeu!
Que dá sentido a tudo o que se viveu, vive e viverá.
De ciclo em ciclo vamos serenando o nosso amor.

                                                                                              I/2005

Pulo do gato



Mas é preciso
ter muita ciência
ter muita paciência
ter muita experiência
ter muita consciência
para ser feliz.

P/1996

Comunicação



Quando você diz A e eu falo B
acho que não vai dar mais pra se entender
Você insiste no seu A e eu no meu B
o que vai ser do nosso amor, este furor?
Ainda bem que apesar do A e do B
nos entendemos lá no C
do seu corpo na minha cama
da sua cama com o meu corpo
nosso corpo-a-corpo é nossa comunicação
nosso corpo-a-corpo encerra sempre a discussão
Que A ou B ? - Que nada!
Pula logo lá pro C.

K/1995

HÁ MAR












E quando o barco sair da praia
atingir mar alto e as tempestades?
Marinheiro que sou, da proa em que estou
já vi tanto amor afundar no mar ...
Mas é preciso acreditar, na via
na travessia, no timoneiro a navegar
no rumo, no cais do porto a se chegar
Mas é preciso acreditar, sem fé cega
que o amor não pega só de tocar
que o amor não morre só de enjoar
morre é de deriva, no dia-a-dia, até afundar.
E haja mar...

K/1993

Desordem alfabética

Arrasto as angústias
beiços, bundas e bolas bestiais
correndo com cores comoventes
das dolorosas dúvidas
embora esteja enterrado
feito de fome, fumo e favela
ganhando na goela a guerra geral.

Há homens, haja horrores
invisíveis infortúnios inspiradores
jogos, jardins ou jazigos?

Luzes lavam a lama
multidões de machos e meretrizes
nas noites nebulosas e nulas
orientam os olhares ocultos
presos pelo pesado passado

Quantas questões queria questionar
registrando restos de rostos
sussurrando sonhos e sorrisos
televisionando tempos, tédios e terrores?

Urge uma união útil de urros
vejo vultos em vales ventosos
ximangos xingando a xepa
zanga-me o zelo e zarpo a zunir.
S/1976

FONTE DE VIDA

Nem todas as palavras juntas
nem todos os números
nem todas as leis

Nem todas as ideologias juntas
nem todas as armas
nem todos os reis

Nem todos unidos poderão
poluir minha fonte de vida
de amor sou um vulcão
de lavas com asas partidas.

FE/1984

OS OBJETOS IMPERFEITOS

Eu, o objeto dela
Faço da tripas coração
dos seus caprichos minha vocação
Mas estou sempre tão desligado!
                       Ela, o meu objeto
                      Se faz colorida e perfumada
                      dia de sol e noite enluarada
                      Mas está sempre tão superficial!
                                               Ele, o nosso objeto
                                               Se faz ostensivo prodígio
                                               do borbulhar do gênio vestígios
                                               Mas está sempre tão inconformado!
                                                                          Nós, os objetos dele
                                                                          Nos fazemos luz, verdade e raiz
                                                                          simulamos um mundo simples e feliz
                                                                          Mas estamos sempre tão cansados!

FE/1975

AULAS MATINAIS DE LETRAS


Quando o dia desperta
Por trás dos morros de Viamão
Com a intensa luminosidade
De um quadro de Dali
Quando o sol tira
A cabeça pra fora
Da coberta do horizonte
Abrindo as cortinas de nuvens
Nas manhãs deste seco outono
Eu entro no Campus do Vale da UFRGS
E  gasto a manhã  tentando aprender algo
Não sei o quê e nem pra quê saber...


M/2012

GURU DA CAMASUA




Eu sou da laia
Eu sou da lama do amor
Dalaia-lama: kamasuada
Sou seu guru, mestre e professor.

                                                          
                                                   E/2008

Corpo & Alma

Este viver físico, sucessivo
Com um dia após o outro
Contínuo, sem intervalos
Sem uma folga para repousar
Sem podermos tirar férias desta vida
É que nos faz um potencial suicida.
                                                  Mas como tudo está determinado
                                                  nos insondáveis desígnios do Criador
                                                  Fica aqui a minha modesta sugestão
                                                  Para que no próximo dia do juízo final
                                                  Este modelo de existência sofra uma remodelação
                                                  Tal que possibilite o trânsito entre o físico e o espiritual
                                                  Logicamente que com pedágios de carga horária mínima
                                                  Para garantir que o mundo físico tenha continuação
                                                  E não haja uma debandada geral para o outro astral.

                                                                                                                                  I/2004.

Caldeirão

Contra a tábua de carne
você esfaqueia o meu coração
em culinárias de bruxa malvada
e dá gargalhadas da fervura da minha aflição
A pão e água faço regime de sobrevivência
entre o tempero dos meus ranços
e a concha dos teus chiliques
no caldeirão fervilhante do nosso amor.
                                                                         P/1996

REFÉM















Yo no tengo compromiso con lo que hablo
pero solo hablo lo que pienso
tampoco tengo compromiso con lo que pienso
pero solo pienso lo que sinto
Yo tengo sido rehén de mis sentimientos
sentir tiene sido mi unico compromiso
desgraciadamiente....

K/ Havana,1993

PORTA ERRADA

Que janela é esta
que me cativa?
Que som é este
que corta o vidro fechado?
Que luz é aquela
que vem daquela rua escura?
Que tic-tac é aquele
que vem daquela máquina estranha?
Que regulamento é esse
que me regula e rege?
Que coação abstrata é essa
que servilmente obedeço?
Que expectativa é esta
em cada passo que piso?
Que murmúrios são estes
onde só vejo sorrisos?
Que desalento é este
                                                                 nas mínimas coisas?
                                                                Que porta é esta
                                                                 em que entrei?

FE/1974

O VÍCIO DE PENSAR
















É preciso prestar atenção
Mais no que sem querer se pensa
Do que no que se fala ou faz
Posto que se pensa o tempo todo
Muito mais do que se faz e fala
Até por que o vago pensar
É um entretenimento pra vida passar
Incólume, sem nela se estar de fato
Pensar é viciante como a TV e o crack
E têm o mesmo efeito colateral
Alienante do aqui e agora pulsante
É preciso acabar com o vício de pensar
O tempo todo é preciso viver o Já!!

M/2012

Ciclo das Nuvens

Sob um arquipélago de nuvens
Feito de ilhas grandes, médias e pequenas
Com formas variáveis: ora de cabeças zens
Ora das clássicas ovelhinhas pastando serenas
No campo azul do céu infinito
Cresce em mim a consciência de ser um espírito
Aprisionado  na gaiola do corpo
E contido pelas grades do tempo
Na roda evolutiva de vidas e mortes
Até, como nuvens, nos dissolvermos
Virados em pó, nada se perde, tudo se transforma
E, como água de chuva evaporada em novas nuvens
                                              Reiniciamos o ciclo de renascimentos na Roda da Vida.

                                                                       E/2008

CADERNO DE RESERVAS POÉTICAS

“Ser poeta é ter-se um ofício como outro qualquer, por isto devemos cuidar de não perdermos nenhum de nossos achados ou descobertas, assim é recomendável a prática de um caderno de anotações destas reservas poéticas, para lançar-se mão na primeira oportunidade. Como serão empregadas não se sabe, mas o certo é que todas acabam sendo utilizadas.”   Maiacovski                                                                                 
                    I
Não consigo não ser quem sou
como não consigo ser quem não sou
Mas plenamente, com sinceridade
nem quem sou consigo ser



                 II
Pra começar
nem comecei
pelo começo
Pra terminar
Sim, terminei
pelo começo.

               
                 III
Nosso lance é o mesmo
que jogar no Maracanã lotado
com o povo todo alucinado
torcendo pelo nosso prazer...



                IV
A ideia de pecado no prazer
que por milenar é lei madura
se aplica até no churrasco
pois a carne macia e gostosa
ou é junto ao osso com tutano
ou é junto a uma manta de gordura.
                
                 V
Em um estado tal de excitação
com a sensibilidade aguçada
como se estivéssemos em carne-viva
na maravilhosa tortura concebida
entre o amante e a sua amada.


               VI
dúvidas divididas
são dívidas dissolvidas
devidas em outras vidas
             VII
A lua suspensa
está cumprindo suspensão automática
no eterno campeonato
diante do cartão vermelho do sol.

                      VIII
Quem acha que uma vida é pouco
não me peça companhia nem apoio
pois eu sigo na minha e não me acanho
achando que pra este mundo de loucos
uma vida só está de bom tamanho.




            IX
É...
eu ‘tou aqui
eu ‘tou no mundo
eu ‘tou na minha
ou ‘tou por baixo
ou ‘tou por cima
eu ‘tou na rinha.
I/1999



OPERÁRIO PADRÃO


Hoje dei uma de Capitão Marvel
com o  blusão sobre os ombros
da capa fazendo o papel
pisei fundo, fui voando
defender o bem e o mal:
defender o meu salário
e o lucro do meu patrão.

P/1996

O CÁGADO

A tartaruga e o coelhinho da Páscoa
andavam os dois pelo mesmo caminho
a tartaruga era lenta, a coitada
e o coelhinho era bem ligeirinho
mas acontece que a tartaruga
chegou bem antes
que o folgado coelhinho.

K/1994

COTIDIANO I



Num delírio transparente
Fico a tecer no tempo
Minha cotidiana vida
Que passa indiferente
Navegando nas ondas
Agitadas do dia
Que finda na calmaria
De uma noite
Na solidão de um quarto
Onde ouço o açoite
Do vento na madeira
Que protege meu corpo inerte
Nas asas do pensamento
Cruzo o abismo que beira
O meu leito e o mundo
Para deliciar-me na inconsciência...
Para cair vitorioso
Nas profundezas do sono.

G/1972